Guaraná, suco de caju e goiabada? Não em camisetas.

Conhecido como o rei do soul e famoso pelo seu enorme sucesso nas rádios e discotecas da década de 70 e 80, Tim Maia voltou às manchetes no mês de setembro por motivos muito distintos. Mais de 25 anos após seu falecimento, o STJ decidiu um caso envolvendo uma de suas obras icônicas.

O caso começou em 2012, quando a marca de roupas Reserva, sem a autorização dos herdeiros de Maia, lançou uma coleção de camisetas que exibiam trechos das canções do cantor. Afinal, se você, assim como muitos brasileiros, aprecia um clássico do estilo MPB, muito provavelmente já escutou as célebres músicas “Do Leme ao Pontal” e “Você e Eu, Eu e Você”. Em razão disso, é possível presumir que você também reconhece as estrofes: “Tomo guaraná, suco de caju, goiabada para sobremesa” e “Você e eu, eu e você, Eu e você, você e eu (Juntinhos)”.

Foi daí que saíram as estampas das camisetas da Reserva: “Guaraná & suco de caju & goiabada & sobremesa" e "Você & eu & eu & você”. Segue abaixo a imagem de uma das peças:

A família do cantor, então, acionou judicialmente a empresa visando a pôr fim à comercialização das camisetas, que julgavam ilícita. A fabricante, todavia, alegou que as frases seriam de uso comum e, portanto, poderiam ser utilizadas sem a anuência dos sucessores. Aliás, para início de conversa, temos que admitir que a expressão “Tomo guaraná, suco de caju, goiabada para sobremesa” é suficientemente original para ser protegida nos termos da lei brasileira de direitos autorais (lei 9.610/98, que vamos chamar de LDA). Afinal, a originalidade é um dos requisitos indispensáveis para a proteção.

O STJ entendeu que a família estava certa. Mas curiosamente, não há referência, no acórdão, àquele que poderia ser o mais óbvio argumento de defesa: o direito de citação. Contudo, o ponto já foi invocado mais de uma vez por alunos em sala de aula e, por isso, é sob este ângulo que gostaríamos de analisar o caso.

Primeiramente, ao justificar o seu voto, o Ministro Marco Aurélio Bellizze afirmou que a indenização se justificava em razão da utilização comercial da obra, que somente poderia ocorrer a partir do consentimento do autor ou de seus herdeiros.

Ocorre que, ao contrário do que muitos pensam, o uso comercial de obra de terceiro nem sempre é um problema pela nossa legislação autoral. A LDA, nos seus artigos 46 ao 48, dispensa a autorização para o uso de obras protegidas em determinados casos. Duas dessas hipóteses são: 1) a citação para fins de estudo, crítica ou polêmica (art. 46, III); e 2) reprodução de pequenos trechos de uma obra em outra, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova, que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause prejuízo injustificado aos interesses do autor (art.46, VIII).

Em nenhum desses dois exemplos, a lei proíbe finalidade comercial. Aliás, quando a LDA quer proibir fins lucrativos, acaba sendo expressa nesse sentido. O art. 46, VI, por exemplo, diz: “a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro”.

Por outro lado, como vocês sabem, diversos livros acadêmicos, com inúmeras citações em seus textos, são vendidos sem que haja autorização dos autores referenciados ou necessidade de pagamento a eles. Ou seja, se é possível fazer citação em livro, por que não seria possível fazer citação em música ou em filme? Ou em camiseta?

Bem, no caso das camisetas a situação nos parece ser de fato distinta. Todas as exceções acima elencadas dizem respeito à reprodução para a criação de novas obras. Acho que podemos concordar que uma camiseta, independentemente de seu caráter estético, possui uma função principal como item de vestuário. Esta não seria, portanto, caracterizada como uma obra nova para ser incluída na lista de limitações aos direitos autorais.

O elemento que poderia ser considerado uma obra autoral seria a estampa impressa nas camisas. Entretanto, conforme é possível observar na imagem anterior, as peças de roupa se limitam à reprodução de trechos da música. Além disso, a LDA, no citado art. 46, VIII, impõe que um dos requisitos para o direito de citação ser exercido é que o objetivo principal da obra nova não seja o de reproduzir a obra anterior. Olhando para as camisetas, de fato parece haver mera reprodução do trecho citado, sem que ele tenha se transformado em nova obra.

Ou seja, não apenas é necessário que haja uma obra nova como que essa obra nova esteja revestida de alguma originalidade, de modo que não seja apenas a reprodução da obra anterior. Logo, conclui-se que não há nas camisetas qualquer elemento que possa caracterizá-las como obra autoral e, com isso, possibilite a reprodução não autorizada das canções de Tim Maia. No nosso entender, neste caso o STJ acertou.

Mas deixamos vocês não apenas com nossa opinião, mas também com uma dúvida. Acreditamos que não há como negar a existência de criatividade em um refrão que reúne itens tão distintos da gastronomia nacional como guaraná, suco de caju e goiabada. Contudo, será que é possível dizer o mesmo sobre o verso “você e eu, eu e você”? Será que há originalidade o suficiente ao ponto de este trecho não poder ser reproduzido - nem mesmo em camisetas? Ou o fato de essa camiseta fazer parte de uma coleção acaba por estender a uma citação menos original a força protetiva da outra?