True Crimes - A quem Pertence uma História?

Nos anos 1960, Truman Capote, então um jornalista de 30 e tantos anos, escreveu seu livro “A Sangue Frio”, descrito como “romance não ficcional”, obra inaugural do Novo Jornalismo ou Jornalismo Literário. A história é conhecida e foi a matéria-prima para o filme Capote, que deu um Oscar de melhor ator ao falecido Philip Seymour Hoffman: em 1959, na pequena cidade de Holcomb, Kansas, quatro membros da família Clutter foram brutalmente assassinados. O crime gerou intensa investigação policial, que levou à captura dos assassinos Richard Hickock e Perry Smith, condenados à morte. Capote chegou a Holcomb um mês após o crime para investigar o caso, entrevistando envolvidos e analisando documentos, além de ter se aproximado emocionalmente de um dos assassinos. Ele acompanhou os criminosos até sua execução, em 1965. Seus textos foram publicados na New Yorker e depois reunidos em livro, que fez enorme sucesso.
Ou seja, não é de hoje que o gênero “true crime” (aqui tratado de maneira ampla e genérica) atrai o interesse do público. Mas parece que ele está particularmente em alta nos últimos anos . Basta olhar a enxurrada de filmes e documentários que lotam as plataformas de streaming, além de podcasts dedicados ao assunto, para ver que o segmento tem contado com o interesse do público. Só no segundo semestre deste ano, estrearam (ou vão estrear) obras como “A Vítima Invisível: O caso Eliza Samudio”, “Maníaco do Parque”, “Volta Priscila”, “Praia dos Ossos”, “Tremembé” , todas baseadas em casos de crimes reais.
As produções estrangeiras não são menos numerosas. A série “Monstros” Netflix, conta com duas temporadas (a terceira está a caminho) e muita polêmica. A primeira, “Dahmer”, foi um grande sucesso mas causou descontentamento por parte das famílias das vítimas, por conta do processo de retraumatização a que foram submetidas . A segunda temporada, “Irmãos Menendez - Assassinos dos Pais”, pode levar à revisão do caso , apesar de a família deles ter expressado “veementemente seu repúdio à produção, classificando-a como (...) grosseira e anacrônica’ repleta de ‘inverdades e falsidades’” .
Esse tipo de revisão não seria inédita. Errol Morris, documentarista nascido em 1948, lançou em 1988 seu filme “A Tênue Linha da Morte” . Nele, Morris investigava a condenação à morte de Randall Dale Adams pelo assassinato de um policial em Dallas, em 1976. Ocorre que, com o documentário, Morris pôs em questão a culpa de Adams, o que acabou por libertá-lo da pena de morte três dias antes de sua execução, causando inclusive impacto em outros casos . Daí, você pode imaginar que Adams ficou eternamente grato a Morris pelo desfecho positivo, não? Então, não... Adams PROCESSOU Morris, alegando que a história pertecia a ele, Adams, não a Morris Eles chegaram a um acordo, com Morris dizendo que “nunca fora sua intenção impedir Randall Adams de ganhar dinheiro com a história de sua vida”.
Então, perguntamos: afinal, quando falamos de “true crime”, a quem pertence uma história? Ao autor do crime? Às vítimas e famílias? Aos jornalistas? A quem a queira contar? O Direito vai trazer diversos elementos que devem ser levados em consideração. Curiosamente, até direitos autorais estão envolvidos.
Recentemente, uma decisão do tribunal de justiça de Nashville, nos EUA, determinou que o conteúdo produzido por um assassino, responsável pelo massacre que ocorreu na escola Covenant, não poderia ser divulgado pela mídia com base na legislação autoral.
Tragicamente, na manhã do dia 27 de março de 2023, um atirador entrou no colégio Covenant e tirou a vida de seis pessoas que estavam no local. Dentre elas, três crianças, estudantes da escola, e três adultos, uma professora, um zelador e a diretora. Antes do triste acontecimento, o assassino deixou mensagens e um diário por escrito a algumas pessoas próximas. Após o massacre, os direitos autorais sobre estes documentos foram cedidos aos familiares das vítimas pelos pais do atirador.
A imprensa, então, solicitou autorização para a publicação deste material, mas teve o seu pedido negado pelos parentes das vítimas. Eles entenderam que a divulgação reviveria o trauma e os causaria ainda mais transtornos, além de serem contrários a hipóteses de que terceiros lucrassem com a reprodução da história.
Outra justificativa para a não divulgação trata-se da preocupação dos familiares em silenciar o agressor - ao não o recompensar com a possível fama advinda do massacre. Esse aspecto é importante porque, segundo o relatório sobre ataques em escolas do governo federal brasileiro de 2023, uma das motivações destes ataques em colégios é a busca por notoriedade e o desejo de reconhecimento público. Dessa forma, limitar a visualização e o compartilhamento de quaisquer informações sobre os atiradores pode ser essencial para desencorajar que outros crimes semelhantes ocorram.
Os jornais, entretanto, argumentaram que as informações sobre o massacre seriam relevantes ao interesse público e, por isso, a divulgação deveria ser permitida. Nesse sentido, acionaram o tribunal de justiça de Nashville buscando a liberação dos documentos do atirador.
A decisão proferida pelo tribunal, contudo, apesar de suscitar a importância jornalística dos fatos ocorridos, reconheceu a titularidade dos direitos autorais dos familiares das vítimas, de modo a evitar a divulgação midiática sem a prévia autorização.
Outro caso similar citado na matéria ocorreu no estado da Flórida, onde um dos sobreviventes de um massacre à escola de ensino médio Marjory Stoneman Douglas conseguiu judicialmente direitos sobre o nome do atirador. O objetivo principal da decisão era impedir que o agressor se beneficiasse dos lucros da comercialização de produções audiovisuais, livros e quaisquer outras obras. Também visava-se, com isso, a limitação da divulgação do vídeo do episódio na internet.
Ao tratarmos deste caso no contexto brasileiro, importa destacar que, no nosso país, não seria possível ter direitos exclusivos sobre o nome de alguém. Direitos de personalidade, como honra, imagem e nome, são intransmissíveis e irrenunciáveis, nos termos do Código Civil. Podem sofrer limitação voluntária, mas não algum tipo de expropriação.
É também no campo dos direitos de personalidade que vamos encontrar os mecanismos de proteção das famílias das vítimas, conforme já mencionado em alguns casos. A narrativa de uma história não pode comprometer a honra ou a imagem de terceiros implicados (quase sempre a contra-gosto) nos eventos narrados. E vale aqui também um lembrete à imprensa, às vezes imprudente: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, conforme prevê a Constituição Federal em seu art. 5º, LVII. Simone Schreiber trata do assunto em sua tese de doutorado, publicada como “A Publicidade Opressiva de Julgamentos Criminais”.
De modo geral, contudo, a quem pertence a história a ser contada?
Esta pergunta nos remete a ADI 4.815/DF julgada pelo Supremo Tribunal Federal em junho de 2015 sobre a necessidade de autorização para a publicação de biografias. Em breve resumo, o litígio se originou do aparente conflito entre os princípios da liberdade de expressão e artística em oposição à inviolabilidade da intimidade e da vida privada. A decisão proferida determinou ser “inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes).”
Ou seja, segundo a jurisprudência do STF, não seria necessária sequer autorização do biografado para a elaboração de biografias, desde que fosse resguardado o direito de resposta ao conteúdo criado. Dessa forma, a titularidade das vítimas e de seus familiares sobre a história de vida do ofensor não impediria a sua reprodução em obras de natureza literária ou audiovisual. Além disso, a história de vida de alguém não configura uma obra intelectual. Isso porque, como sabemos, o direito do autor visa a proteção da expressão da obra artística ou científica. Não há direito autoral sobre a história de vida de alguém. Sobre os escritos dessa pessoa, sim. Mas não sobre a vida vivida.
Em síntese, vale a liberdade de expressão com alguns limites: os direitos de personalidade de todos os envolvidos, incluindo sobretudo a vítima e os familiares; eventuais direitos autorais, mas não direitos autorais sobre a história de vida de alguém. Isso não existe até que a história de vida tenha sido exteriorizada, expressa. Com a decisão do STF, se é possível publicar uma biografia, é possível também contar a história de outras formas - por exemplo, audiovisual. O que importa é a proteção da liberdade de expressão.
Finalmente, uma dúvida: com a passagem do tempo, será que seria possível invocar o “direito ao esquecimento” como um outro limite à liberdade de expressão? O tema é interessante, mas essa conversa fica para depois.