As Limitações do Direito Autoral

Em 2018, o Museu Nacional do Rio de Janeiro teve mais de 90% do seu acervo consumido em um incêndio. Esse museu, além de ser uma memória afetiva de todos os cariocas que, como eu, cresceram no Rio de Janeiro e tinham o museu como seu quintal, também tinha um acervo valioso.

Os cariocas e turistas de outras partes do Brasil, comovidos com o incêndio, começaram a divulgar nas mídias sociais fotos e vídeos que tinham registrado em visitas anteriores ao museu. Esse ato permitiu que se criasse um registro digital de parte do acervo do museu. Agora, filmar ou fotografar obras expostas em museu e publicá-las em mídias sociais em princípio seria uma violação de direitos autorais. No entanto, esse ato provou ser de extrema utilidade para o bem comum.

Em 2010, os organizadores da 29ª. edição da Bienal da Arte em São Paulo foram forçados a cancelar a participação da Lygia Clark da feira por conta dos valores muito acima do mercado que os herdeiros da artista estavam cobrando pelo direito à exposição das suas obras. Independente das discussões sobre a adequação das taxas pagas normalmente por esse tipo de exibição, o público em geral acabou sendo prejudicado por não ter tido acesso à obra da artista por conta de interesses financeiros divergentes.

O interesse em preservar a reputação do seu avô também fez com que Stephen Joyce não só destruisse parte das obras de James Joyce como também impedisse a organização de exposições até que a escritora Carol Loeb Schloss citasse passagens de James Joyce na biografia que ela tinha escrito sobre sua filha, Lucia Joyce.1

E se uma biblioteca quiser disponibilizar suas obras em braile para leitores cegos, ou se um museu quiser disponibilizar seu acervo online? É preciso negociar com cada um dos autores?

O instituto de direitos de autor foi criado para salvaguardar os interesses dos criadores, mas existe um entendimento que o interesse do bem comum em algumas situações precede os do criador.

A Convenção de Berna para a Proteção de Obras Literárias e Artísticas, administrada pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, que estabelece princípios mínimos que os seus 179 Estados contratantes devem respeitar com relação a direitos autorais. Da mesma forma como ela estabelece princípios gerais em que os direitos dos criadores devem ser respeitados, ela também estabelece situações onde a obra pode ser reproduzida sem pedir autorização ao criador.

Via de regra, o correto é sempre pedir autorização para o autor, mas quando você está preparando material para uma aula ou fazendo citações para um artigo acadêmico por exemplo, além da prática ser exagerada, ela poderia obstruir o acesso do público em geral a uma informação do interesse comum. Por exemplo, suponhamos que um juiz se recuse a autorizar que um professor cite uma decisão sua em aula. Essa restrição, além de prejudicar a qualidade da aula como um todo, ainda pode prejudicar o acesso de todo um grupo de alunos a uma informação sem a qual não podem garantir que tenham uma formação adequada, ou que prejudique esses alunos no desenvolvimento do seu pensamento crítico.

O artigo 9 da Convenção de Berna2, que trata dos direitos de reprodução, estabelece em seu ítem dois que os países contratantes da Convenção (que eles chamam de “os membros da União”) poderão estabelecer em suas legislações nacionais situações em que as obras podem ser reproduzidas sem o consentimento do autor, com a condição que isso aconteça em casos especiais, que não afetem a exploração comercial da obra e não prejudique injustificadamente os interesses legítimos do autor. Os autoralistas chamam esse conceito da regra dos três passos (“three-step test”).

Ou seja, em princípio, as legislações podem estabelecer casos em que as reproduções podem ser feitas mas somente se os casos atenderem cumulativamente a esses requisitos. Se atender a dois requisitos e não atender a um, por exemplo, está fora do que foi estabelecido.

Anos mais tarde, novas Convenções Internacionais (O Acordo de Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, administrado pela Organização Mundial da Comércio, e os Acordos da OMPI para Internet) continuaram adotando a regra dos três passos para o estabelecimento de limitações.

A própria Convenção de Berna também estabelece algumas situações onde se aplica a exceção à proteção dos direitos autorais nos artigos seguintes quando são citações, para fins de ensino ou informação, contanto que esse uso respeite o “fair practice” e cite o autor.

1 An end to bad heir days: The posthumous power of the literary estate | The Independent | The Independent

2 WIPO Lex

Parte 2