O que é direito autoral? Parte 2

Os direitos autorais são um ramo recente do Direito Civil. Se propriedade, direito de família e sucessões são discutidos há pelo menos dois mil anos, os direitos autorais contam com pouco mais de 300 anos de história.

A antiguidade não conheceu o sistema de direitos autorais como ele é concebido contemporaneamente. Nas antigas civilizações grega e romana, imaginava-se que o homem que criasse intelectualmente não deveria ‘descer à condição de comerciante os produtos de sua inteligência’. É o que afirma Eduardo Lycurgo Leite, em sua obra “A História do Direito de Autor no Ocidente e os Tipos Móveis de Gutenberg” (publicada no livro “Plágio e Outros Estudos de Direito de Autor”; p. 116).

Já nessa época, no entanto, surgiram as primeiras discussões sobre titularidade dos direitos autorais e a opinião pública desprezava os plagiadores, como afirma Daniel Rocha em seu livro “Direito de Autor”. Ele menciona que “a palavra plagium é latina, mas constituía em Roma o correspondente do vocabulário grego que tinha o sentido de ‘oblíquo’, isto é, de ‘doloso’. Para os romanos, o plagiador era o mesmo que roubava ou sequestrava um homem, ou vendia como escravo um homem livre”. Séculos depois, e justamente por causa das facilidades tecnológicas, o plágio é um assunto onipresente na discussão dos direitos autorais e se relaciona intimamente com um tema que abordaremos em breve: a originalidade.

A rigor, “os produtos da inteligência e da arte não eram considerados mais do que uma 'coisa', que pertencia a seu autor”. E a liberdade de negociação e de transmissão desse bem intelectual abrangia limites muito mais extensos do que os de agora. Curiosos exemplos nos são trazidos pelos autores que tratam do tema. Daniel Rocha, por exemplo, relata que Euforion, filho de Ésquilo, conquistou por quatro vezes a vitória nos concursos de tragédia apresentando peças inéditas de seu pai como se fossem suas. Assim, supõe-se que o filho herdava também a obra intelectual como se esta fosse uma coisa comum.

O domínio do autor sobre sua obra era tão grande que era possível negociar até mesmo a sua autoria. Daniel Rocha relata, ainda, interessante caso em que o poeta Marcial discute com Fidentino, suporto plagiador de sua obra, os meios de aquisição de seus trabalhos. Marcial teria argumentado: “segundo consta, Fidentino, tu lês os meus trabalhos ao povo como se fossem teus. Se queres que os digam meus, mandar-te-ei de graça os meus poemas; se quiseres que os digam teus, compra-os, para que deixem de ser meus”. Depois, afirmaria que “quem busca a fama por meio de poesias alheias, que lê como suas, deve comprar não o livro, mas o silêncio do autor”.

Atualmente, os princípios mais elementares das leis de direitos autorais vedam a transmissão da autoria da obra, independentemente do meio por que se dê a negociação. Mesmo quanto às obras em domínio público, o nome do autor, se conhecido, deve permanecer a elas vinculado eternamente. Exemplos são a referência, ainda hoje, à autoria de “A Odisséia” (Homero) e de “A Eneida” (Virgílio), mesmo que se tratem de poemas épicos escritos provavelmente nos séculos VIII a.C. e I a.C., respectivamente.

A invenção da tipografia e da imprensa, no século XV, revolucionou o acesso a obras textuais porque os autores passaram a ter suas obras tornadas disponíveis de maneira muito mais ampla. Nessa época, surgem os privilégios concedidos aos livreiros e editores, verdadeiros monopólios, sem que se visasse, entretanto, a proteger os direitos dos autores.

Ao mesmo tempo que a invenção da tipografia por Gutemberg foi capaz de popularizar os livros como nunca se imaginara possível, teve como consequência despertar o temor das classes dominantes, ou seja, igreja e monarquia. Afinal, o que antes levava tempo para ser feito – eram os escribas que copiavam, um a um, a alto preço, as obras escritas –, agora, com o processo tipográfico, era obtido em pouco tempo, a custo reduzido e com muito maior repercussão social, sem que houvesse um controle mais efetivo sobre o tipo de informação propagada. Está identificando aqui alguns dos elementos da internet? Pois não é à toa. Também a internet produz os mesmos efeitos, em escala muito maior. Cópias hoje são feitas rapidamente, com custo quase zero e ótima qualidade. “Pirataria” não é um tema do século XXI – ele nos acompanha com a evolução da técnica de reprodução das obras.

Já nesse primeiro momento surgem também práticas de concorrência desleal. Os livreiros normalmente arcavam com custos altíssimos para a edição das obras escritas. Além disso, faziam incluir, nas obras, gravuras e informações adicionais ao texto original. Não era raro, entretanto, que tais obras fossem copiadas por terceiros, que as reproduziam e imprimiam sem terem todos os cuidados necessários e sem precisarem arcar com os custos da edição original.

Plágio, desejo de censura, concorrência desleal e pirataria: problemas que foram sendo verificados ao longo dos últimos séculos e que apenas são retomados, com outra roupagem, na era da internet.

Por isso, também os livreiros passaram a se preocupar com sua atuação no mercado, e decidiram pressionar as classes dominantes de modo a terem seus direitos resguardados. Com o passar do tempo, os livreiros começaram a obter lucro com sua atividade, enquanto remuneravam os autores de maneira exígua. E os autores passaram a entender ser detentores de direitos que mereciam ser protegidos.

É nesse cenário de temor por parte das classes dominantes em razão das ideias que poderiam vir a ser veiculadas, de insatisfação por conta dos livreiros que viam suas obras copiadas sem licença e de insatisfação dos autores quanto à remuneração recebida que surgem os primeiros privilégios.

O alvorecer do direito autoral nada mais é que a composição de interesses econômicos e políticos. Não se queria, então, proteger prioritariamente a “obra” em si, mas sim os lucros que dela podem advir. É evidente que ao autor interessava também ter a obra protegida em razão da fama e da notoriedade de que poderia vir a desfrutar, mas essa preocupação vinha, sem dúvida, por via transversa.

No século XVI começaram a ser atribuídas licenças aos livreiros para que publicassem determinados livros. Do mesmo modo, exigia-se do livreiro que tivesse autorização do autor para publicar sua obra.

A crescente insatisfação dos autores e o desenvolvimento da indústria editorial acabaram por enfraquecer o sistema de censura legal. Assim, na Inglaterra, a censura acaba em 1694 e, com ela, o monopólio. Os livreiros ficaram enfraquecidos e decidiram mudar sua estratégia: começaram a pleitear proteção não mais para eles próprios, mas sim para os autores, de quem esperavam a transferência dos direitos sobre as obras. Você pode ler mais sobre isso nos livros “Direitos de Autor e Direitos Conexos” (Eliane Y. Abrão) e “Direitos de Autor – Fundamentos Históricos e Sociológicos” (João Henrique da Rocha Fragoso), que nos serviram de referência.

Assim é que, em 1710, foi publicado o Statute of Anne (Estatuto da Rainha Ana), que concedia aos editores o direito de cópia de determinada obra pelo período de 21 (vinte e um) anos. Ainda que incipiente, trata-se de evidente avanço na regulamentação dos direitos de edição, por consistir em regras de caráter genérico e aplicável a todos, e não mais privilégios específicos garantidos a livreiros individualmente.

Se você viu o filme “A Favorita” < https://www.imdb.com/title/tt5083738/>, de Yorgos Lanthimos, de 2018, sabe de qual rainha estamos falando. A Olivia Colman, que inclusive venceu o Oscar de melhor atriz pelo papel, interpreta a Rainha Ana justamente no momento histórico em que seu Estatuto foi publicado. O filme não aborda a questão, mas não deixa de ser interessante conhecer os bastidores do palácio daquela época.

Na França, logo após a Revolução Francesa, um decreto-lei regulou, de maneira inédita, direitos relativos à propriedade de autores de obras literárias, de obras musicais e de obras de artes plásticas como pinturas e desenhos.

A despeito desses esforços iniciais, a verdade é que, até a primeira metade do século XIX, havia um verdadeiro “direito à contrafação” reinante na Europa – mesmo que informalmente. Maristela Basso menciona que “na Holanda se podia publicar o que na França, às vezes, a censura real não permitia e isso acontecia também em outros países. Nos países divididos em várias províncias, como Holanda, Itália e Alemanha, os autores sofriam ainda maiores constrangimentos. Uma obra impressa em Roma ou em Florença poderia ser reimpressa em Turim, Nápoles ou em qualquer outro lugar, sem que isso fosse considerado fraude e sem pagamento de direitos autorais. Países de língua e de literatura mais conhecidas, como a França, viam seus autores sofrerem a contrafação de forma ainda mais marcante e aberta”.

Foi assim que em 1886 surgiram as primeiras diretrizes para a regulação ampla dos direitos autorais, em âmbito internacional.  No início, a Convenção foi assinada por apenas 10 países. Mas sua importância cresceu com o tempo e hoje quase todos os países são signatários dela. O Brasil, claro, está incluído. E essa é uma evidente dificuldade no sistema autoral como ele se sustenta hoje. A base é uma convenção que tem mais de 130 anos! Ela foi criada antes do cinema e quando a fotografia dava seus primeiros passos. Sua última revisão se deu nos anos 1970, em um momento pré-internet. Se o direito autoral encontra dificuldade de se ajustar à contemporaneidade, muito se deve às regras fundadoras da matéria.

O que de fato impressiona é que ainda que com as constantes adaptações em razão das revisões de seu texto, a Convenção de Berna continua, ainda hoje, a servir de matriz para a confecção de leis nacionais (dentre as quais a brasileira) que irão, dentro do âmbito de seus Estados signatários, regular a matéria atinente aos direitos autorais. Inclusive no que diz respeito a obras disponíveis na internet.

A Convenção de Berna foi revista em oito ocasiões: em 1896 (em Paris), 1908 (em Berlim), 1914 (em Berna), 1928 (em Roma), 1948 (em Bruxelas), 1967 (Estocolmo), 1971 (em Paris) e 1979 (quando foi emendada). Mas com o surgimento da internet, várias premissas importantes para a indústria cultural, como o controle de acesso e de cópias, foram ressignificadas. Por isso, a Convenção de Berna precisaria ser repensada para se ajustar ao tempo presente.
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