Sistema Internacional - parte 4

A história é conhecida por todos: Anne Frank, adolescente de origem alemã, escreveu seu famoso diário enquanto se escondia dos nazistas na Amsterdam ocupada durante a Segunda Guerra Mundial. Com o esconderijo delatado, foi parar no campo de concentração de Bergen-Belsen, onde veio a morrer. Otto, seu pai, único sobrevivente da família, empenhou-se em publicar o diário da filha, o que aconteceu em 1947. O livro tornou-se um clássico, traduzido para dezenas de idiomas e um dos textos mais importantes do século XX.

Passados 70 anos da morte de Anne Frank (ocorrida em março de 1945), o destino do texto escrito pela adolescente é o mesmo reservado às obras de autores mortos pelo mesmo tempo: o domínio público. Quando uma obra ingressa em domínio público, pode-se fazer com ela praticamente o que se quiser: traduções, obras derivadas, adaptações, transformações, tudo isso sem pedir autorização a ninguém nem pagar nada por isso. Aplicando-se o prazo simples da LDA e das leis europeias, o diário deveria ter entrado em domínio público em 01/01/2016.

Entretanto, como Otto Frank sobreviveu a ela (ele morreu apenas em 1980) e fez a seleção de textos que compõem o diário, seus sucessores legais defendem que o prazo de proteção deve ser contado a partir da morte de Otto. Ou seja, o diário ingressaria em domínio público apenas em 2051. Quem tem razão?

O caso é bastante interessante. Pela LDA, autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica (trataremos disso no próximo capítulo). Sendo assim, não resta dúvida de que a autora do diário é mesmo Anne Frank, já que nunca se contestou que fosse dela a criação intelectual exclusiva dos textos.

Por outro lado, a lei também considera uma obra passível de proteção “as coletâneas, compilações, antologias, enciclopédias, bases de dados e outras obras que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual” (art. 7º, XIII da LDA. Vamos tratar das obras protegidas em um dos próximos capítulos). Teria o pai de Anne Frank criado uma compilação de textos passível de gerar um novo direito sobre o diário?

Imaginemos um exemplo bastante simples. Se alguém quer publicar um livro de poesias brasileiras do século XVIII, trabalhará com obras exclusivamente em domínio público em razão de seus autores estarem todos mortos há mais de 70 anos. Assim, o autor da antologia terá um direito autoral sobre a seleção, sobre a curadoria, sobre sua escolha, mas não sobre o uso de cada uma das poesias que compõe a sua coletânea. Ou seja, qualquer outra pessoa pode publicar nova antologia de poesias brasileiras do século XVIII, desde que não se valha exatamente dos mesmos poemas. Cada poema individualmente está em domínio público, mas a seleção é protegida.

O que acontece no caso do diário de Anne Frank é algo semelhante. Em 01/01/2016, o conteúdo bruto certamente entrou em domínio público, mas talvez não a organização dos textos conforme concebida por Otto Frank. A versão original do diário, sem qualquer intervenção do pai de Anne, entrou integralmente em domínio público em 01/01/2016. Contudo, a versão editada por Otto pode ser considerada uma compilação cuja organização constitui criação intelectual.

Na prática, quais os efeitos desta proteção? O primeiro, e mais evidente, é que a obra na versão dada por Otto não está em domínio público. Como a proteção se dará sobre a organização do diário, é evidente que trechos – ainda que longos - do texto poderão ser usados desde que sem observar sua organização interna.

Importante: como a tradução gera um novo direito autoral para o tradutor, quando uma obra estrangeira entra em domínio público, como é o caso dos textos de Anne Frank, o que ingressa no domínio público é o texto original, não a tradução. Exceto se o tradutor também morreu há mais de 70 anos. Em caso de obras mais antigas, como textos de Shakespeare, Balzac ou Flaubert, essa é uma hipótese bastante razoável.

Outra consequência é que obras derivadas que não sejam reproduções fiéis do texto na forma como ele se encontra organizado poderão ser feitas. Peças, livros, contos, histórias em quadrinhos livremente inspirados no diário, especialmente se não forem estritamente fiéis à seleção proposta por Otto Frank são permitidas. Por mais curioso que possa parecer, quanto mais livre e menos presa à organização do diário a obra derivada for, menor a chance de caracterizar violação de direitos autorais do trabalho do pai de Anne Frank.

Qualquer forma mais incisiva de proibir o uso do texto em si deve ser proibida. Afinal, criar camadas adicionais de proteção sobre obras em domínio público é conduta que deve ser repudiada.  Há pouco tempo, circulou a notícia de que fotos comerciais da Torre Eiffel iluminada poderiam ser consideradas violação aos direitos autorais sobre a iluminação da torre, ainda que o monumento em si esteja em domínio público < https://oglobo.globo.com/ela/gente/turistas-podem-pagar-multa-ao-tirar-fotos-da-torre-eiffel-noite-postar-imagens-nas-redes-sociais-16949735>. Essa conduta parece caracterizar abuso de direito, já que se cria novo direito autoral que impede o uso lícito e justo de obra que já não conta mais com o monopólio legal em favor do autor por pertencer a todos.

Recentemente, contudo, foram publicadas, inclusive no Brasil, as versões originais do diário, chamadas A e B, que não contam com a edição de Otto Frank ou de sua secretária. A edição brasileira é esta aqui:

Assim, passou-se a ter acesso às versões em domínio público do diário. As versões C e D, trabalhadas por Otto Frank e Mirjam Pressler seguem potencialmente protegidas por conta das contribuições intelectuais de cada um deles na seleção e edição dos verbetes originais.

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